Idade Média

26 janeiro 2016

A Igreja modelando o ideal do cavaleiro

Para compreendermos como a Igreja modelou o ideal de cavaleiro, é conveniente entendermos a rudeza dos bárbaros recém convertidos.

O primeiro personagem que podemos focalizar é Raul de Cambrai, personagem de uma canção de gesta. Ele fez tais e tantas, que sua mãe acabou por amaldiçoá-lo; mas enquanto ela o amaldiçoava, ele ria.

Um dia ele chega diante de um mosteiro de religiosas e dá esta ordem aos seus soldados:

“Armareis minha tenda no meio da igreja, fareis meu leito diante do altar e poreis meus falcões sobre o crucifixo de ouro”.

Ele queima a igreja, queima o mosteiro, queima as religiosas, entre elas a mãe de seu mais fiel vassalo e amigo.

Enquanto as chamas crepitam, ele se banqueteia à farta no próprio local do sacrilégio, sendo ainda por cima um dia de jejum. Ele desafia a Deus, ergue a cabeça contra Deus.

Esse era um barão feudal do século X, uma matéria-prima muito rude com a qual a Igreja irá trabalhar. Aqueles homens eram ainda semi-bárbaros, semi-selvagens.

Já eram cristãos, naturalmente batizados, mas o bárbaro germano a todo momento aparecia neles, e aparecia com grande ênfase, com grande entusiasmo, e com certa frequência os dominava.

Virando a página, ouviremos um cronista do século XIII, em 1220, falando de um cavaleiro chamado Walter de Birbach.

Vestido de ferro, com sua rija espada na mão, em grandes lides de guerra, esse cavaleiro tinha uma tão grande devoção a Nossa Senhora, que se consagrou a Ela, rendendo-Lhe preito de homenagem como uma rainha terrestre.

Antes das lides, o cavaleiro assiste a Missa. Os Milagres de Notre Dame (KB 71 A 24, fol. 123r).
Antes das lides, o cavaleiro assiste a Missa.
Os Milagres de Notre Dame (KB 71 A 24, fol. 123r).

O cronista diz que quando ele se retirou para um mosteiro cisterciense, no fim da vida, poderia ter conservado ali sua armadura, porque ela tinha adquirido um ar tão religioso quanto o burel cisterciense.

Esse é o tipo ideal, generalizado, do barão feudal dos séculos XII e XIII. Uma mudança enorme, portanto, entre essas duas figuras.

Como é que se fez em tão pouco tempo uma mudança tão grande? Quem é que fez isso? Certamente a Igreja, o Espírito Santo, mas foi sobretudo através da Cavalaria.

A Cavalaria, como quase tudo na Idade Média, não surgiu por decreto, não surgiu pela ação de um homem determinado, não surgiu nem mesmo em certo lugar.

Embora a Igreja não ame a guerra, na Idade Média ela viu os valores que existem na profissão militar.

Viu também a necessidade que havia de guerras, naquele momento histórico: antes lutar contra os maus cristãos semi-bárbaros, antes lutar contra os bárbaros declarados, antes lutar contra os muçulmanos.

Por isso ela fez nascer em toda a Europa, pela sua ação lenta, orgânica, pela ação do Espírito Santo, o desejo de dar um ideal e um freio àquela fogosidade germânica. E depois apresentou aos soldados medievais, aos homens medievais, esse ideal que é a Cavalaria.

Podemos definir assim as coisas: Cavalaria é a forma cristã da condição militar, e o cavaleiro é o soldado cristão. Ela é mais um ideal do que uma instituição.

Assim, a Igreja ofereceu ao soldado uma lei precisa e um fim preciso. A lei precisa foi o Código da Cavalaria, uma lei especial adequada para aquele gênero de vida, para aqueles homens. E o fim preciso era alargar na Terra as fronteiras do Reino de Deus.

Vemos numa crônica medieval que, para protestar adesão à Fé de Jesus Cristo, era costume em França que os cavaleiros, durante a leitura do Evangelho na Missa, tivessem sua espada nua.

Com isso eles queriam dizer: “Se for preciso defender o Evangelho, nós aqui estamos”.

Carlos Magno coroado imperador pelo Papa Leão III
Carlos Magno coroado imperador pelo Papa Leão III

Mas além de apresentar esse fim preciso e essa lei precisa, a Igreja se lembrou do sinal corporal, uma necessidade profundamente humana, sem a qual a realidade permanece imperfeita, inacabada, desfalecente.

Ela tratou então de satisfazer esse gosto medieval pelo concreto, pelo encarnado, pela manifestação sensível dos valores das realidades espirituais.

Ela tratou de concretizar também a Fé, os sentimentos cristãos. Por isso formou o direito feudal. Profundamente concreto, o direito feudal é concebido para indivíduos reais, bem personalizados, não para homens abstratos de uma sociedade teórica.

Repousa sobre a fidelidade, sobre a reciprocidade. Um vassalo liga-se a um senhor por um laço pessoal, torna-se seu homme-lige, obrigando-se ao serviço da hoste, ao serviço militar, e em troca esperando do suserano subsistência e proteção.

Esse laço pessoal é proclamado em uma cerimônia, um rito. Mais um sinal sensível, mais uma coisa concreta, que torna mais concreta ainda essa realidade.

O vassalo se ajoelha diante do senhor, com as mãos em suas mãos, o cinturão de que pende a espada aberto — em sinal de confiança, de entrega, de abandono — declara-se seu homme-lige e lhe entrega seus bens.

Por sua vez, o suserano beija o vassalo em sinal de afeição e proteção. Depois devolve-lhe os bens ou dá-lhe bens, se o vassalo não os tinha.

É a investidura do feudo. Encerra-se o contrato pelos juramentos sobre o Evangelho. Coisa profundamente concreta, com simbolismo muito sensível.

A Igreja tomou esse laço feudal e o transpôs para o domínio espiritual. O cavaleiro é o vassalo de Deus, Suserano supremo.

Na divisa de Santa Joana d’Arc — “le Christ qui est roi de France” — Nosso Senhor é um soberano, cercado da corte dos santos. Deus como rei, como suserano, tem a sua corte, a corte dos santos, servido pela milícia dos anjos. São expressões muito significativas.

Pelo rito de se armar cavaleiro, este resolve deliberadamente empenhar sua vida, sua pessoa, seus bens, todos os seus atos, ao serviço desse suserano de poder e majestade infinitos.

Como dizia a regra dos templários:

“Servir militarmente, combater com pureza de ânimo, pelo sumo e verdadeiro Rei”.

Expressão tipicamente feudal e militar. Assim como se combate pelo senhor feudal, também se combate pelo Senhor eterno.

O serviço da hoste, obrigação do vassalo, no caso da Cavalaria é a defesa da Santa Igreja, feudo de Deus, e também do povo, dos fracos, dos pobres, dos órfãos, das viúvas — dos pobres miúdos, como se dizia em Portugal na Idade Média.

O cavaleiro presta esse serviço com o coração inteiramente leal.

 

 

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